Por Fernanda Della Monica
No ano de 2020, a Nike finalmente ingressou com o pedido de registro de um modelo já muito conhecido mundialmente: o Air Jordan 1. Mas como um modelo de referência mundial há mais de 35 anos pode ser registrado só agora?
A resposta vem da história: nem sempre a Nike foi tão dominante em relação à cultura de sneakers pelo mundo e, principalmente, nas quadras esportivas.

História do Air Jordan 1
Durante os anos 60 até meados dos anos 80, a marca Converse era a grande referência dos principais tênis para basquete. O modelo All-Star da marca, hoje considerado um clássico casual, era usado por praticamente todos os jogadores de um único time. Isso porque o mais comum na época era a franquia fechar um contrato entre a marca e todos os jogadores do time, obrigando-os a usarem o mesmo calçado.
O modelo era básico, com um design relativamente simples e totalmente branco. Aos poucos, o calçado ganhou a cena das ruas e passou a ser visto como algo fora dos padrões impostos pela sociedade, virando um símbolo do movimento punk dos anos 70.
Tal mudança de status do Converse All-Star fez com que mais marcas esportivas pensassem em investir na modalidade. Uma delas foi a Nike, que até o momento, trabalhava predominantemente com tênis de corrida.
Aproveitando-se da “moda do exagero”, das cores espalhafatosas e dos detalhes chamativos que moviam as tendências de estilo dos anos 80, a Nike decidiu dar início a um projeto ousado de ascensão as quadras, na tentativa de ganhar as próximas gerações do esporte.
Baseados nesse objetivo, os executivos da Nike começaram a avaliar investimentos nos novatos que aspiravam ao basquete profissional que a NBA proporcionava. Afinal, nada mais justo para atrair uma nova geração que pensar naqueles que serão os símbolos do futuro.
E assim foi feito. No ano de 1984, na terceira escolha geral do Draft, o grande executivo de marketing esportivo americano, Sonny Vaccaro, escolhe ninguém mais ninguém menos que Michael Jordan para ser o embaixador da nova marca.
Ter um jovem negro jogador de basquete como garoto propaganda parecia extremamente simbólico, inovador e influente para as gerações futuras, uma vez que não era comum que negros estivessem em publicidades esportivas. Ao mesmo tempo, a ideia era muito ousada e arriscada, já que na época, Jordan era apenas novato, ainda que visto como uma promessa do esporte.
O risco foi aceito pelos empresários, e em 1985, o primeiro modelo do tênis para as quadras foi criado nas cores principais da franquia Chicago Bulls: preto e vermelho.
Ainda que estranho para os padrões da modalidade esportiva na época, o sucesso do tênis foi absurdo. Aliado ao estilo de basquete mais aéreo e inovador de Michael Jordan, a expressão Air foi adicionada à marca, fazendo uma completa revolução dentro e fora das quadras.
O modelo simples do All-Star, que já estava em declínio, se perdeu imediatamente em quadra com as cores chamativas e, até então, incomuns na modalidade. A cada partida de Michael Jordan, ouviam-se jovens garotos comentando: “olhem os tênis daquele cara”.

A NBA não gostou muito dessa ideia. No mesmo ano de lançamento, em 18 de outubro, ocorreu a proibição do modelo nas quadras por violar as regras de cores da liga.
David Stern determinou que todos os jogadores deveriam, sem exceção, usar tênis predominantemente na cor branca ou preta, instituindo uma multa no valor de 5.000 dólares para aqueles que a violassem. O episódio fez com que surgisse o Michael Jordan Day, celebrada até hoje e lembrada nas redes sociais com a hashtag #MJDay.
A regra não foi cumprida pelo jogador, fazendo com que a Nike arcasse com a multa por partida.
Com a quantidade de multas aplicadas e a imagem de Jordan simbolizando o primeiro jogador a desafiar as regras impostas pela NBA, iniciou-se uma tentativa de aprimorar o modelo para que este continuasse presente nos pés do atleta, respeitando a imposição de Stern em relação a predominância da cor branca no calçado.
Logo após o primeiro ano de contrato de Michael Jordan com a Nike e ainda influenciados com a ideia de revolucionar os calçados de quadra, foi criado o Air Jordan 1 pelo designer Peeter Moore, atendendo a exigência das cores impostas pela liga e também das características que o jogador desejava em um modelo: o encaixe perfeito em seu pé, o cano longo para proteger a região do tornozelo e as cores da franquia de Chicago.

O sucesso foi meteórico, alcançando a imbatível marca de 55 milhões de dólares à Nike somente no ano de lançamento. À época, era um valor altíssimo, considerando que as vendas ficaram em torno de 3 a 4 milhões de pares.
Não existe nenhum outro modelo tão emblemático quanto o Air Jordan 1 — ou AJ1 — quando nos referimos ao esporte. O caminho percorrido entre a Nike e Michael Jordan resultou numa das maiores marcas esportivas do mundo e que, além disso, atingiu seu objetivo inicial: marcar uma geração.
Com a onda fashion inspirada na década de 90 que marca o cenário mundial da moda nos últimos anos, o clássico Air Jordan 1 deixa um pouco de lado a sua essência esportiva como um modelo voltado para as quadras e passa a compor um estilo mais casual, já que agora a peça possui um ar de “retrô sofisticado”, uma vez que o mais simples custa aproximadamente R$899 no Brasil.
Ao lado das tendências, o aumento das vendas dos modelos clássicos Bred e Chicago são impulsionados pelo lançamento da série The Last Dance — disponível em português como Arremesso Final — no ano de 2020 pela Netflix, contando detalhes da carreira, vida pessoal e aposentadoria de Michael Jordan.
Problemas com o patenteamento do AJ1
Ainda no ano de 2020, a Nike depositou o pedido de patente na United States Patent and Trademark Office (USPTO), concedido no dia 01 de junho de 2021. Existem muitas teorias sobre os motivos que levaram a inércia da empresa durante tanto tempo, a grande maioria diz respeito a especulações e divergências que ocorrem internamente.
Mas o Air Jordan 1 não estava legalmente desprotegido. Até então, o único registro que a Nike possuía era em relação a marca e a imagem comercial do modelo.
A lei norte-americana possui uma característica muito peculiar: ela protege aqueles produtos que podem ser identificados ainda que não exista qualquer escrito identificando a marca explicitamente. Aquele desenho daquela marca se torna tão conhecido que isso já é o suficiente para proteger o mercado consumidor.
No Brasil, caso alguém queira registrar uma marca e receber toda a proteção legal por ela, é necessário depositá-la no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e aguardar todo o trâmite legal. Apesar da má fama pela burocracia, o processo é simples e rápido.
Como podemos ver, contestar a cópia de uma marca é bem simples. No entanto, quando falamos de patentes e desenhos industriais, o trâmite torna-se muito mais complexo, uma vez que é necessário demonstrar que aquele desenho é tão exclusivo que não existe nenhum outro semelhante já criado no mundo.
De acordo com a lei brasileira, o desenho industrial é definido como “a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial”. Tais princípios são aplicados também à lei norte-americana, destacando a necessidade de novidade e originalidade no produto.
E justamente por isso a notícia da patente deu muito o que falar. Após ser concedido pela USPTO, alguns opositores surgiram contra a legalidade desse registro. Um deles foi o advogado nova-iorquino Robert Lopez, que contestou a solicitação de registro do desenho, já que o enviado à autoridade não possuía o símbolo/logotipo da Nike (swoosh), característica essencial do produto que, em tese, o distingue dos demais no mercado.
A partir desse detalhe, Lopez acusou a Nike de fraude, recolhendo provas e documentos que demonstram outros momentos nos quais a empresa copiou características de outros modelos.
O argumento parece até ter sentido, mas ao avaliar outros desenhos de calçados da Nike patenteados, é possível verificar que muitas não possuem o swoosh incluso para que isso não se torne um impedimento em futuras colaborações com outras marcas e artistas. Além disso, com apenas o desenho da silhueta sem muitos detalhes, a Nike consegue proteger uma quantidade maior de produtos contra falsificações.
A Nike é uma das que mais sofre com a pirataria. Nos anos 2000, o jornal Folha de São Paulo apurou que, por ano, a empresa deixa de faturar aproximadamente R$ 50 milhões no Brasil. Internacionalmente, a Nike está envolvida em diversos processos envolvendo cópias e personalizações ilegais de seus modelos.
Dentre esses processos, há um que ficou muito famoso recentemente: o rapper Lil Nas X e o modelo Satan Shoes Air Max 97, desenvolvido pela MSCHF.
Caso Lil Nas X

Em resumo, o rapper lançou uma linha de tênis do modelo Air Max 97 pertencente a Nike, baseada no seu clipe “Montero – Call Me By Your Name” com diversas referências satânicas. A coleção era composta por 666 calçados e que supostamente possuíam uma gota de sangue humano na sola.
O grande problema é como ocorreu esse lançamento. A empresa MSCHF (Miscellaneous Mischief) é conhecida pela produção de bootlegs (produtos exclusivos que nunca foram lançados oficialmente) e vem há anos se livrando de acusações judiciais. Embora muito semelhante à pirataria, os bootlegs chamam a atenção de colecionadores devido à raridade dos itens que geralmente são “vazados” ou que carregam assinatura de artistas ou famosos na sua produção.
A Nike em momento algum autorizou a MSCHF a utilizar o desenho do Air Max 97 para a produção da coleção, acionando judicialmente a empresa que, em resposta, alegou que não se tratavam de meros calçados, e sim, de itens de arte. Em abril, as duas empresas entraram em acordo em relação a polêmica, devendo a MSCHF fazer um recall dos produtos e comprá-los pelo preço vendido.
Assim, ao conseguir superar a contestação do advogado nova-iorquino no ano passado, a Nike enfim conseguiu patentear o desenho industrial do Air Jordan 1.
Tal evento foi uma grande vitória para a marca, pois agora ela se vê protegida de toda a tormenta judicial que envolva o seu modelo mais icônico, além de conseguir evitar embates judiciais, como o episódio contra a MSCHF.
Sensacional, tive um AJ1 em 1990.
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