O cultuado Hoop Dreams foi um verdadeiro marco no cinema. Além de seu impacto social, a obra também mudou as regras da categoria de Melhor Documentário do Oscar.
Os Estados Unidos em 1994

Antes de falarmos sobre Hoop Dreams, lançado em 1994, é preciso relembrar o contexto do ano de lançamento da obra. Nos esportes, os Estados Unidos sediaram o tetracampeonato mundial da seleção brasileira – título que voltou à alegrar o país, após a trágica morte de Ayrton Senna, meses antes. Na política, o escândalo Whitewater assombrava Bill Clinton e a Casa Branca. Já na cultura, o vocalista do Nirvana e líder do movimento grunge, Kurt Cobain faleceu aos 27 anos – vítima de overdose.
Porém, outro fator social estava causando tensão na terra do Tio Sam. Não diferente dos dias atuais, o começo dos anos 90 foi marcado pela violência policial contra a população afro-americana. Em 1991, o operário da construção civil Rodney King foi brutalmente agredido pela polícia de Los Angeles.
A violência policial é desmascarada em Los Angeles

Rodney voltava para casa após beber com alguns amigos. Negro e sob condicional, percebeu que estava sendo perseguido por uma viatura policial e temeu retornar à cadeia. Contudo, sua tentativa de evitar uma abordagem agressiva não teve êxito. Embora tivesse estacionado em um local teoricamente seguro, – próximo à condomínios, com moradores por perto – Rodney ainda foi abordado, algemado e espancado por bastões em mais de 53 repetições.
A violência desumana dos policiais foi filmada por um civil, George Holliday, que entregou às filmagens para a KTLA, emissora de notícias locais. O caso ganhou repercussão nacional. Foi a primeira prova de violência policial registrada.“Finalmente, tínhamos conseguido filmar o Monstro do Lago Ness com uma câmera” disse Milton Grimes, advogado de Rodney.
No entanto, ainda era a velha América de sempre. A decisão de um júri – só de homens brancos – definiu a inocência dos quatro policiais. O veredito causou indignação na população negra, sendo o estopim para os Distúrbios de Los Angeles, em 1992. A cidade californiana virou um verdadeiro palco de guerra durante seis dias. Foram 55 mortos, 2 mil feridos, 1 bilhão de dólares de prejuízo econômico e um imensurável prejuízo social: mesmo com os direitos civis, os negros não eram bem-vindos nos Estados Unidos.
Consegue ver diferença de 1992 para 2022? Pois é.
Hoop Dreams: A realidade dos jovens negros na América

De forma resumida, Hoop Dreams é um retrato perfeito da vida de um jovem negro nos Estados Unidos. Por meio de dois garotos – Arthur Agee e William Gates – o espectador acompanha um capítulo decisivo na vida destes jovens.
Assim como no Brasil, o sonho de muitos garotos é se tornar um atleta profissional para sair da pobreza. O roteiro de vida sempre é o mesmo: falta de acesso à educação de qualidade, poucas oportunidades de emprego, baixa renda, bairros violentos, más influências, fácil acesso às drogas e, em diversos casos, a ausência paterna. Muitos jovens negros vivem isso até hoje, e Hoop Dreams foi o primeiro documentário a abordar esse tema.
Em um cenário tão complexo, a única esperança para esses jovens é o esporte e, com isso, a pressão pelo sucesso só aumenta. É possível sentir isso no documentário. Arthur e William carregam o peso de suas vidas, e do futuro de suas famílias, em cada arremesso. O fracasso é impensável para eles, pois a realidade de um negro era – e ainda é – muito mais próxima de um Rodney King do que um O.J. Simpson.
A aclamação de Hoop Dreams por público e crítica

Dirigido por Steve James e coescrito com Frederick Marx, o documentário foi aclamado pela crítica. A história dos dois estudantes do Ensino Médio de Chicago foi escolhida como Melhor Filme de 1994 pelos críticos Gene Siskel, Roger Ebert, Kenneth Turan, Stephen Hunter e Mack Bates. Em 2004, foi eleito um dos 1000 Melhores Filmes de Todos os Tempos pelo The New York Times. Por fim, em 2017 a IDA (Associação internacional de Documentários) colocou Hoop Dreams em primeiro, na lista dos 25 melhores documentários de todos os tempos.
Em seu programa de televisão, Ebert começou sua crítica com a seguinte frase: “Este é um dos melhores filmes sobre a vida americana que eu já vi”. Nas bilheterias, a produção que custou 700 mil dólares fez uma ótima receita de 11.8 milhões de dólares, números excelentes para um documentário nos anos 90.
Além disso, saiu vitorioso em diversos festivais de cinema, como no importante Festival de Sundance. No entanto, a esperada nomeação, e vitória, na categoria de Melhor Documentário do Oscar… não veio. Pode até parecer piada tendo em vista todos os parágrafos anteriores, mas lembre-se, era a mesma América de sempre.
Quer saber como ocorreu o boicote? Acompanhe os próximos parágrafos e tente não ficar tão irritado quanto este que vos “fala”.
De boicotado à revolucionário na Academia

Considerado um dos capítulos mais vergonhosos da história do Oscar, a não-indicação de Hoop Dreams vai muito além da preferência dos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Não houve qualquer tipo de análise criteriosa: Hoop Dreams simplesmente não foi assistido. Bem, para sermos mais justos com os senhores do comitê de documentários que, segundo Ebert, viram a exibição do longa por meros 15 minutos.
O desprezo vergonhoso foi protagonizado por membros voluntários, pois a Academia não tinha um júri voltado especificamente para documentários. Esse comitê foi composto por, em sua imensa maioria, homens brancos idosos. Os voluntários assistiram 63 filmes e, para interromper as exibições, ligavam lanternas e apontavam em direção à tela após os primeiros 15 minutos, se três quartos dos membros ligassem as lanternas, a exibição era encerrada na hora. Quando descobriram que Hoop Dreams sequer foi indicado à categoria, o presidente da Academia, Arthur Hiller disse que faria “uma análise cuidadosa dos procedimentos do comitê de documentários”.
O diretor-executivo, Bruce Davis, foi além. Ele exigiu os resultados completos da votação, algo que nunca havia ocorrido antes. Os votantes, que tiveram seus nomes omitidos, avaliaram os filmes de 0 a 10. Analisando os números, Davis percebeu que um pequeno grupo de votantes deu nota 0 para todos os filmes com exceção dos 5 filmes que queriam ver indicados – estes receberam nota máxima.
Essa prática suja distorceu completamente a votação, e fez com que diversos documentários tivessem suas médias finais diretamente afetadas – incluindo Hoop Dreams que recebeu notas 0. Quando o caso foi divulgado, a Academia sofreu muitas críticas – merecidas – quanto a credibilidade da premiação.
A maior premiação do cinema precisava mudar, e mudou

Para o Oscar seguinte, a nota mínima das avaliações passou a ser 6. As infames lanternas foram excluídas das sessões o comitê se dividiu em dois, para diminuir o número de filmes assistidos pelos votantes. Seis anos mais tarde, o comitê passou a ser formado por documentaristas. Hoop Dreams foi indicado para Melhor Edição no Oscar de 1994, mas sendo avaliado por outro júri.
A merecida estatueta não veio, mas este episódio mudou para sempre a principal premiação de cinema do mundo. E apesar de Arthur Agee e Williams Gates não terem jogado profissionalmente, suas histórias foram imortalizadas na história do cinema. Desde 2005, Hoop Dreams está no Registro Nacional de Filmes da Biblioteca do Congresso, sendo considerado “culturalmente, historicamente ou esteticamente significativo” e recomendado para preservação.
A arte, a vida de dois jovens, o Oscar e a cultura foram transformados pelo basquete. Nada mal para um esporte de bola laranja, não é mesmo?
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